Publicado por José Geraldo Magalhães Jr. em Artigo - 04/11/2019 às 14:10:28

Obviedades em torno do Dia da Consciência Negra

As palavras que virão na sequência são de domínio público, pelo menos dos negros e negras. Sobre o dia da consciência negra, não há novidades, só obviedades. 

Parece óbvia a afirmação de que o ser humano não é só um espírito ou uma alma. Somos “espíritos ou almas viventes”. Isso significa que também somos seres integrais, seres corpóreos providos de inúmeras características, de várias necessidades, possibilidades e muito diferentes entre nós. Não somos um conceito de “humanidade”, somos substância humana em vários tons étnicos, culturais etc., e conquanto sejamos diferentes, todos/as fomos feitos/as “à imagem e semelhança do divino”. 

Contudo, durante o processo histórico, através de uma lógica econômica fortemente ancorada em interpretações religiosas e filosóficas, a hegemonia “branca europeia” julgou-se no direito de transformar “pessoas africanas negras” em mercadoria, propriedade privada ou em “coisas”. E nessa chave antropológica europeia, a pessoa negra foi despojada de sua humanidade, ou seja, o racismo anulou, obliterou, fragmentou, matou a alma do negro e da negra escravizados/as. Então se “naturalizou” que as populações negras, por exemplo, no Brasil, não precisavam estudar, se profissionalizar, ter a sua família protegida pelo estado ou viver. Sequer podiam ter direito a um sepultamento digno. Então, caso você nunca leu essas coisas, ou não tem estômago para abordar essa temática, convido você para o diálogo, mas pare com discursos generalistas, falsamente piedosos e aprenda com os próprios negros e negras, pessoas como Maria da Fé (Fezinha), Rev. Antônio Sant’Ana, Diná da Silva Branchini, Bispo Luiz Vergílio Rosa, Revda. Kaká Omowalê e tantos/as outros/as. Leia seus textos, ouça suas histórias doidas. A propósito, dê uma olhada no mapa da violência do Brasil e descubra como um estado branco tem sistematicamente promovido o apagamento da consciência negra.

Portanto, leitor/a, ao reafirmarmos “o dia da consciência negra”, lembramos que em todo o mundo, e em especial no Brasil, milhões de pessoas por quase 400 anos foram forçadas a migrarem de sua terra natal, a África negra, a fim de serem escravizadas neste país. Os negros e as negras que não morreram durante a viagem, foram moídos/as nos moinhos dos engenhos, nas plantações de café, sob as formas mais cruéis possíveis. Por isso, insistimos numa “consciência negra”, “consciência indígena” e poderíamos prosseguir citando várias outras minorias, sociologicamente falando. 

Também parece óbvio o que reza o 5º Artigo da Constituição Federal sobre os direitos fundamentais da pessoa humana. Mas a continuidade da mão de obra escrava nos vários estados do país obriga-nos diuturnamente a ouvir o clangor dos grilhões da escravatura, assim como o genocídio atual da população negra que nos obriga a ouvir novamente os gemidos dos negros e negras enforcados/as nas florestas, torturados/as e fuzilados/as pelos capitães do mato. Parafraseando Walter Benjamim, indignar-se é fazer zumbir, ressuscitar!

Outra obviedade é a inércia das igrejas protestantes como um todo no combate ao racismo, incluindo a Metodista, com raríssimas exceções de algumas ações por algumas pessoas conscientes. Essa paralisação das instituições religiosas evangélicas perante o testemunho profético contra o racismo se dá por dois motivos: o primeiro é o fato de o protestantismo brasileiro ter sido historicamente sempre omisso em relação ao escravagismo e ao racismo, uma vez que ele mesmo foi um algoz dos negros e negras. Segundo, o arrefecimento das políticas públicas de igualdade racial nos últimos anos com a extinção ou fusão de secretarias específicas e, principalmente, o aparelhamento ideológico do atual governo nos órgãos-chaves travando a pauta de discussão democrática para os direitos humanos, diversidade e igualdade racial. 

Infelizmente, o racismo jaz não apenas às portas de nossas “igrejas locais”, mas já tem sido parte constituinte de sua estrutura desde sempre. Uma breve leitura dos dois testamentos bíblicos é suficiente para constatarmos acepção de pessoas, discriminações do pobre, da mulher, preconceito étnico-racial, escravagismo, entre outros. A propósito, a igreja metodista brasileira, sob a pressão de negros e negras metodistas, conseguiu dar um passo muito importante a partir das pastorais e designação de pessoal de referência em algumas regiões eclesiásticas e principalmente na criação de um programa antirracismo.

Contudo, se fizermos uma análise do escopo geral desse programa e pontuarmos algumas ações, o que está funcionando de fato? Por exemplo, na minha região ainda não tem uma pessoa referência do “combate ao racismo”; será que há outras regiões eclesiásticas sem essa referência? Quem está efetivamente visitando as igrejas locais e elaborando levantamentos de ações para enviar aos/às bispos/as e lideranças regionais, via Pastorais Regionais? Quantos cursos foram elaborados e realizados desde o 19º Concílio Geral sobre a questão racial nas regiões? Já foi formado o grupo de negros/as escritores/as? Onde? O que a Rede Metodista da Educação pode apresentar sobre bolsas de estudo em escolas metodistas e bolsas para estudo no exterior para negras/os, indígenas e grupos oprimidos pelo racismo estrutural e pela discriminação étnico-racial? E, finalmente, quem está monitorando as ações da Igreja Metodista, em torno das comemorações do Dia 20 de novembro – Dia da Consciência Negra? 

José Roberto Alves Loiola
Pastor na congregação Metodista do Recanto das Emas/DF
Especialista em História e Cultura da África

Publicado originalmente na edição de NOVEMBRO de 2019 do jornal Expositor Cristão 

*Reprodução parcial ou integral deste conteúdo autorizado desde que seja citado a fonte conforme abaixo:

[Nome do repórter], Expositor Cristão (Edição novembro de 2019)


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