
Este artigo visa complementar a pesquisa anterior em que foi abordado o Primeiro Testamento. Desde per?odos pr?-crist?os s?o atestados os usos do termo can?n como ?lista? e ?registro?, equivalente a kat?logos, para designar tabelas matem?ticas e cronol?gicas.
A palavra grega kan?n tem origem semita e significa ?cana?, depois passou a significar o metro do carpinteiro e a r?gua do escrevente. O desenvolvimento do termo levou ?s signific?ncias posteriores, ?metro?, ?norma?, ?regra? ? aplicadas nos dom?nios da est?tica, lingu?stica, filosofia e religi?o.
A Escritura dos/as primeiros/as crist?os/?s era a B?blia hebraica em sua tradu??o grega, a Septuaginta, obra dos/as judeus/as de Alexandria; eles/as consideravam at? express?es ap?crifas como parte da Escritura (cf. 1Co 2.9; Lc 11.48; Jo 7.38; Tg 4.5; Jd 14-15). O primeiro registro liter?rio temos em 2Cor?ntios 3.14, quando o ap?stolo Paulo fala da ?leitura da Antiga Alian?a?. Nesse sentido, a Septuaginta ? a refer?ncia quando os/as primeiros/as crist?os/?s mencionam a ?Escritura? de modo geral ou quando empregam a f?rmula ?Est? escrito?.
Segundo Philipp Vielhauer, um escrito crist?o somente atingiu a categoria de uma ?escritura sacra?, como can?n, quando obteve o mesmo tratamento do Primeiro Testamento, ou seja, quando ? citado (graph?; cf. Gl 4.30; 1Co 1.31; Rm 1.17; Hb 3.7).
Desde o s?culo II, emprega-se o termo can?n ? confiss?o de f? crist? (regula fidei) e como ess?ncia das doutrinas de f? reconhecidas pela Igreja. No s?culo IV, Eus?bio aplicou o termo exclusivamente para os Evangelhos, e no Conc?lio de Niceia (ano 325) relacionou-se o termo ao registro oficial dos cl?rigos; ambos t?m o sentido de ?cat?logo?. Vielhauer lembra que mais tarde ?can?nico? passou a ser compreendido como ?divino, sagrado, inerrante? quanto ao que diz respeito aos livros aceitos e catalogados.
O per?odo decisivo para a forma??o liter?ria do Novo Testamento foi, portanto, nos meados do s?culo II; ao final desse s?culo os conte?dos encontravam-se fixados (quatro Evangelhos, treze cartas de Paulo, Atos dos Ap?stolos, 1Jo?o e 1Pedro). A aplica??o do termo can?n ? cole??o de textos crist?os ocorre pela primeira vez nos meados do s?culo IV; em rela??o a isso, o termo can?n n?o tem nada a ver com o surgimento da literatura neotestament?ria.
? razo?vel dizer que a primeira iniciativa catalogr?fica foi realizada pelo te?logo radical Mark?on; ele confere sentido liter?rio ao termo euaggelion, tantas vezes mencionado por Paulo. Mark?on ? rejeitado como her?tico pela Igreja de Roma no ano 144; motivos, em resumo: incompatibilizar Jesus de Nazar? e o Deus do Primeiro Testamento, fazer a distin??o de Paulo como ?nico ap?stolo a compreender a nova alian?a ? da? a exclusividade de suas cartas ? e do evangelho de Lucas como ?nico evangelho. Em resumo, tamb?m, a contribui??o de Mark?on consiste em acelerar o processo de um can?n escritural.
Coube a Or?genes, no Oriente, e a Irineu, no Ocidente, influenciarem na aceita??o dos quatro Evangelhos numa persuas?o sobre a vontade de Deus em favor dos caracter?sticos evangelhos para a Igreja. Perspectivamente, a aposi??o entre Antigo e Novo Testamento ocorre em enuncia?es de Tertuliano e Or?genes; expressamente, ocorre no Conc?lio de Laodiceia (ano 363) e na 39? Carta Festiva de Atan?sio de Alexandria (ano 367), onde emerge uma lista de 27 livros como ?Escritura? (autorizado no ?mbito religioso).
Por outro lado, o documento orientador para o estudo deste tema ? o denominado Fragmento de Muratori, em alus?o ao seu editor, Ludovicus Antonius Muratorium; um texto latino de 85 linhas dos s?culos II-III, mas conservado num manuscrito do s?culo VIII e publicado em 1740. Nesse fragmento s?o aceitos os quatro Evangelhos e as treze cartas de Paulo; est?o em debate para aceita??o no culto as cartas 2 e 3 Jo?o, Judas, Apocalipse de Jo?o, Apocalipse de Pedro e a Sabedoria de Salom?o; s?o rejeitadas a carta do Pastor de Hermas, as cartas de Paulo aos Laodicenses e aos Alexandrinos; no entanto, nada diz sobre 1 e 2 Pedro, Tiago, Hebreus e escritos considerados her?ticos. Entre os s?culos IV e V a Igreja latina chegou a considerar Hebreus carta paulina e can?nica.
A tradi??o oral e os evangelhos est?o na origem do cat?logo ?can?nico?. Para Helmut Koester, a tradi??o oral era transmitida sob a autoridade do ?Senhor?, composta de ditos de Jesus de Nazar? e hist?rias de milagres; dentre elas, est?o ?as par?bolas inicialmente escritas em aramaico, depois traduzidas para o grego e introduzidas no cap?tulo 4 do Evangelho de Marcos?.
Quanto ? documenta??o escrita, as cartas comprovadamente leg?timas de Paulo s?o as mais antigas, todas escritas na d?cada de 50 do s?culo I (as comunidades contribuem na composi??o do corpus liter?rio paulino). As cartas serviam ao prop?sito de dar uma resposta a problemas urgentes. Posteriormente, como produtos das primeiras comunidades crist?s, surgiram os Evangelhos, fortemente influenciados pelo g?nero biogr?fico; assim, preservam para gera?es futuras a mem?ria de Jesus. De natureza contextual, o Novo Testamento ? cosmopolita: cont?m textos da ?sia Menor, do mundo egeu, do vale do Jord?o, da S?ria, de Roma.
Em adi??o, ?a quest?o da inspira??o n?o influenciou a composi??o do c?non, porque a pretens?o de possuir o Esp?rito Santo era t?o comum que esse crit?rio s? teria causado confus?o?. Com rela??o ? apostolicidade, Irineu (c. ano 170) apenas exigia a evid?ncia de que os textos tenham servido ? instru??o e organiza??o da Igreja; mesmo os sobrescritos autorais s?o ? guisa de reivindica??o de fidelidade das mem?rias.
[Dialoguei com pelo menos seis em?ritos pesquisadores, dos quais citei apenas dois no texto anterior (Expositor Crist?o, n. 12/2016) e dois aqui; quem sabe, num futuro, poderei fazer-lhes justi?a citando-os literalmente ao coligir os dois artigos].
Jo?o Batista Ribeiro Santos
Pastor na 3? RE, biblista e historiador, docente de Antigo Testamento na FaTeo/Umesp
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL EXPOSITOR CRIST?O DE JANEIRO 2017
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